terça-feira, 3 de março de 2009
do bonito das coisas bonitas
"Os homens amam o que desejam e as mulheres desejam o que amam", eis um bom exemplar daquilo que poderiamos apelidar de "uma frase bonita" - esta, que inclui a outra, pelo contrário, um otimo exemplo de uma näo bonita.
É o lema de capa ou contra-capa, de um livro que me ofereceu a minha namorada comprometida, com a gentileza de näo colocar dedicatória, como sou um homem poli-comprometido, cujo titulo insinua um mapa ou uma descricäo de percurso: "Onde Reside o Amor" de Margarida Rebelo Pinto. É um livro muito bonito também (isto quer implicar que poderá haver livros que contenham muitas frases bonitas, mas näo sejam livros bonitos - este parentesis requer uma explicacäo que segue mais tarde), um livro de amena digestäo, escrito por uma senhorita queque e alfacinha (esta fixacäo de "queque e alfacinha" é a minha visäo dos anos 70 da mullher emancipada: atrevida - este o siginificado do keck em alemäo -, sensual, independente, responsável com ligeireza nas saias curtas).
Regressando ao moto inicial, ao "os homens que amam e as mulheres que desejam" - é uma frase escandalosamente simples, que näo requer explicacöes adicionais, daquelas sentencas que comumente citamos afirmando: "Como já dizia a minha avó", ou "como bem sabia o meu avô" ou "já a minha tia previa". E, aí nasceu a minha suspeita: Porquê essas frases que com frequencia cremos que houveram poder sido postuladas pelos nossos ancestrais menos complexos e mais ligados à vida, em toda a generalidade säo expressas por pessoas que só säo menos complexos no sentido que depassaram essa complexidade, transmitindo conteudos complexos em frases simples? Porquê, entre as pessoas que nos transmitem essas frases que podiam ser dos nossos pais, ou bisavós ou sei lá eu o quê, figuram nomes como Fernando Pessoa (figura altamente erudita e poliglota), Chico Buarque (familia de enciclopedista, sociologos, intelectuais), Erwin Schrödinger (o tal da mecanica quantica), Richard Feynman e por aí fora? E por que razäo dos meus avós, senhores que compartilhavam a noite com a natureza entre lobos, caes da Serra, cabras e ovelhas - näo me recordo dessas frases?
Li há algum tempo de um pensador moderno que sob o efeito de estupefacientes ficava atonito da simplicidade e da clareza do mundo, e mais atonito pelo esquecimento do porquê dessa justificacäo do mundo constantemente conjugado com o findar do efeito do estupefaciente. Até que um certo dia antes de acender as primeiras passitas, colocou um caderno e uma esferografica à mäo para anotar a quinta-essencia do mundo, quando ela lhe viesse, o que näo se fez esperar.
No dia seguinte depois da ressaca, abriu a sua sebenta e encontrou a razäo de ser de todas as coisas, que havia anotado no dia anterior: "Tudo no mundo tem um odor parecido ao petróleo".
Um livro näo é aquela coisa geralmente mais comprida que larga, encadernada. com as folhas cortadas a prumo. Um livro é aquilo que sucede entre essa coisa encadernada e a cabecinha através de cujos olhos as palavras nele impressas se re-produzem de pernas para o ar. No fundo, nem uma reproducäo é, mas sim um jogo, um cintilar que efectua entre os dois - entre o livro e o seu leitor. Este é um tema de Jorge Luis Borges, näo há livros bonitos em si, nem leitores feios em si, há juncöes malogradas e há juncöes sucedidas. O livro certo na pessoa certa, aí reside a literatura. É um tema de Blumenberg também, "ler é escrever", e, mais remotamente, o tema da fenomenologia - ter consciencia de näo é aperceber qualquer coisa exterior ao perceptor, mas sim preencher a distancia que está entre ambos.
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fazer o mundo,
tempos modernos
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