para estragar-me esta tarde de Veräo cinzento, deparei-me como em tropeco numas páginas de Borges, a transcricäo de uma série de conferencias que este deu no Teatro Coliseu em Buenos Aires em 1977, posteriormente compiladas em "Siete Noches". As páginas do meu tropeco (näo sei em que época do ano foram proferidas as palavras correspondentes, mas indubitávelmente na mesma estacäo que a minha - como o Inverno portenho corresponde a este Veräo centro-europeu) levam por titulo "A Poesia", e säo umas quantas consideracöes sobre a poesia em geral e sobre dois poemas. O primeiro deles é um soneto de Francisco de Quevedo, uma figura do barroco, nascido algumas semanas após a morte de Camöes, numa Peninsula Ibérica unificada, (o tal que escreveu a obra perdida "História de Don Sebastiao, Rey de Portugal"), a seu tempo secretário e amigo pessoal do Gran Duque de Osuna, Pedro Tellez-Giron.
Canta Quevedo:
Faltar pode à sua pátria o grande Osuna
mas näo a sua defesa as suas azanhas
deram-lhe morte e carcel as Espanhas
de quem ele fez escrava a Fortuna
...
O pranto militar cresceu em diluvio
deu-lhe o melhor lugar Marte em seu solo
a Mosela, o Reno, o Tejo e o Danubio
murmuram com dor o seu desconsoloAnalisa Borges que
"Quevedo deixou-se arrastrar pela ideia de um herói chorado pela geografia das suas campanhas e por rios ilustres. (...) Houvera sido mais verdadeiro dizer a verdade (...). Com a morte [de um ser humano] morre uma cara que näo se repetirá, segundo observou Plinio. Cada ser humano tem uma cara única e com ele morrem milhares de circunstancias, milhares de recordacöes. Recordacöes de infancia e rasgos humanos demasiadamente humanos. Quevedo parece näo sentir nada disto. Havia morrido na carcel o seu amigo, duque de Osuna, e Quevedo escreve este soneto com frialdade."
É senso comum que os unicos e verdadeiros amigos säo os amigos que sentem e vivem a amizade sem exaltacäo e com sobriedade, que a amizade por exaltacäo é uma amizade por algo näo existente, por uma mera projecäo (nas palavras de Aristoteles, no nono livro da Ética a Nicomachos: "näo se amavam um ao outro, mas sim aquilo que estava em eles, e isso näo era duradouro"). É senso comum ainda, que há um caminho e uma árdua tarefa antes de conseguir estabeler um elo de ligacäo entra a projecäo que cada um de si faz e o que cada um é (é dificil também tornar-se amigo um de si mesmo). Näo sei se será ainda senso comum, que esse elo de ligacäo é uma tarefa infinita, e como tal, talvez seja conveniente ir cumprindo-la com uma boa racäo de prazer.
Recordei-me näo sem algum assombro que 1977 é annus horribilis na história argentina, de plena "Guerra Suja", a Junta Militar do General Videla, Desaparecidos, as Maes da Praca de Maio... e que enquanto Borges proferia a sua conferencia sobre Quevedo, quizas na mesma manzana (o quarteiräo portenho), uma outra poesia, esta terrivel e sangrenta, se realizava.
Näo sei quem disse que "nos tempos que passam é um crime falar de poesia", o que é verdade - mas täo verdade é também a sua inversäo "nos tempos que passam é um crime näo viver em poesia".
Borges terminou essa conferencia em 1977 com um verso de Angelus Silesius lido em alemäo , que vai assim:
Die Rose ist ohne warum; sie blühet weil sie blühet.
(A rosa é sem porque; floresce porque floresce.)
Angelus Silesius
acrescento como epilogo:
Der Dorn hat einen Warum...!
O espinho tem um porque...!
P.S.
Complicada esta coisa da Poesia. Auto-poiesis é o processo de autocriacäo e automanutencäo de um sistema. Consta que a vida é autopoiética, e a poesia como parte da vida... Autopoiético também este sorridente entardecer de um céu de veräo cinzento, por trás do qual descortino imensos palcos azuis. Também ele näo tem porquê.